APRESENTAÇÃO

A imersão tecnológica do consumidor é um caminho sem volta. Podemos celebrar esse fato a partir de tantas promessas que sempre acompanharam esse rápido e não menos representativo movimento de mudança: a ampliação da liberdade de escolha do consumidor diante de um espaço virtual tão competitivo; o mito da autorregulação do mercado a partir da participação direta do usuário na avaliação e solução de seus conflitos de consumo nas plataformas digitais; o acesso mais qualificado à informação de produtos e serviços, sobretudo pela análise da experiência anterior de outros consumidores, bem como pelo auxílio “desinteressado” de sites de compartilhamento de experiências, que seriam uma “vitrine” confiável da performance e atendimento do fornecedor; a necessidade de distanciamento do Estado em relação aos seus compromissos no âmbito da Política Nacional das Relações de Consumo, sob a lógica de que, por ser refratário às transformações sociais, sua excessiva regulação do mercado impediria o desenvolvimento da livre iniciativa e da maior capacidade do consumidor de resolver suas demandas diretamente junto ao empresário; um maior controle da qualidade e segurança dos serviços virtuais pelo próprio sistema de avaliação permanente, concebido unilateralmente pelas próprias plataformas eletrônicas, propagação da sustentabilidade ambiental (amplamente difundidos como grandes trunfos do consumidor no modelo de consumo colaborativo); maior espaço para o empreendedorismo no mercado em contraponto o “vetusto” modelo do emprego formal, estímulo para o pequeno empresário com boas ideias e disposto a trazer inovações no mercado, rompendo o modelo tradicional de interação estática com o cliente; o desenvolvimento do consumo identitário, que permitiria ao consumidor considerar em sua escolha muito mais que o preço do bem de consumo, buscando uma identidade com a marca, ao pautar suas escolhas em critérios mais seletivos e que tivessem uma vinculação mais direta com a ideologia, valores e a sua visão de mundo, ou seja, o consumo seria uma expressão da própria personalidade do consumidor, ao, por exemplo, optar produtos ecologicamente adequados, concebidos sem experimentos cruéis aos animais, ou que estivessem relacionados às mais diversas causas sociais, como a insurgência em relação à qualquer espécie de discriminação (racismo e  liberdade sexual, por exemplo), a defesa da inclusão da pessoa com deficiência, o combate ao trabalho escravo e etc.

Esse livro poderia trazer essa visão romantizada e não menos ingênua desse “admirável mundo virtual”, mas não foi essa a essência do livro coletivo, concebido como expressão do aprofundamento de uma grande rede acadêmica entre Instituições de Ensino Superior de referência do Brasil e da Espanha, a partir do Projeto de Pesquisa intitulado “O novo paradigma da privacidade e do tratamento de dados pessoais nas relações de consumo digitais” e aprovado para financiamento externo no Edital da Chamada MCTIC/CNPq Nº 28/2018 – Universal, o que aumentou nossa responsabilidade em apresentar um resultado final qualificado e acessível a toda sociedade, não apenas à comunidade científica, naquilo que representa a melhor prestação de contas do investimento público utilizado na execução do projeto de pesquisa.

Não havia dúvida que precisávamos expandir o espectro das reflexões para muito além da nova dimensão da privacidade virtual do consumidor diante das grandes plataformas eletrônicas, o que fica muito claro pelo resultado final do livro, cujo alcance foi bem maior. As dinâmicas transformações causadas pela imersão digital do consumidor exigiam o enfretamento de outros temas igualmente relevantes, de modo que dividimos a obra em três grandes capítulos: 1) Inteligência artificial e economia digital; 2) Redes Sociais e assédio de consumo e 3) Empoderamento virtual do consumidor, mediação online e novas ferramentas para a solução de conflitos de consumo.

 A hiperconectividade do consumidor o levou à hiperconfiança, associada ao pouco controle governamental e quase nenhuma responsabilidade das plataformas, estavam criadas as condições ideais para o surgimento de uma nova espécie de vulnerabilidade no consumidor: a vulnerabilidade situacional, fruto das promessas não cumpridas no processo de mudança daquele consumo analógico, agora transformado, quase que compulsivamente, em consumo digital, seja para o bem, seja para o mal. Nesse livro, definitivamente, não passarão desapercebidos os efeitos colaterais dessa transição abrupta no modelo de consumo da atualidade.

É preciso reconhecer que o discurso da liberdade econômica vem sendo defendido como justificava para a supressão de direitos dos consumidores, assim como a defesa da autorregulação do mercado vem ganhando espaço no debate político e acadêmico, agora numa perspectiva distorcida, para legitimar um maior distanciamento do Estado no cumprimento de suas metas e compromissos no âmbito da Política Nacional das Relações de Consumo.

Nesse sentido, no primeiro capítulo o foco será a análise do papel da inteligência artificial no mercado de consumo e suas repercussões no âmbito do tratamento dos dados pessoais, privacidade e intimidade desse consumidor digital, a partir da relativização da autonomia da vontade em razão do consentimento “involuntário” levado a efeito nesse contexto.

Da mesma forma, se enfrentará a questão das novas tecnologias a serviço da “medicalização do consumo” em detrimento da incolumidade do consumidor, sob a perspectiva transdisciplinar da Bioética e do Direito, em especial sobre os benefícios e riscos do uso de prontuários eletrônicos do paciente (PEP) no atendimento médico, os desafios à proteção das informações privadas do consumidor em um mercado global marcado pela supervalorização comercial de dados pessoais e por prematuros marcos regulatórios.

O processo de inclusão financeira virtual do consumidor será avaliado a partir de sua consequência mais nefasta: o superendividamento do consumidor, representando um verdadeiro desafio regulatório diante o agravamento de sua vulnerabilidade decorrente da nova formatação promovida pelo avanço tecnológico, sobretudo em razão da assimetria informacional, do assédio de crédito e da ausência de políticas públicas para a educação financeira do consumidor em contraste com a proliferação de práticas abusivas dos agentes financeiros sem a devida repressão.

Ainda sobre a nova economia digital, a atuação das fintechs no mercado brasileiro (empresas altamente tecnológicas e que atuam na intermediação de crédito financeiro por meio de uma plataforma eletrônica) será analisada a partir de sua capacidade disruptiva no modelo tradicional dos serviços financeiros, bem como diante da necessidade de uma regulação técnica mais condizente com a vulnerabilidade do novo consumidor digital.

Ao tratar da economia de compartilhamento, o livro desconstitui alguns argumentos utilitaristas de autores da Análise Econômica do Direito (AED), dentre os quais o que defende a exclusão da responsabilidade das plataformas virtuais e a transferência do risco da atividade exclusivamente para os usuários, sob a lógica equivocada de que seriam meros intermediários e esse “custo” adicional inviabilizaria o exercício da própria atividade econômica.

A partir do segundo capítulo, o livro enfrenta o papel das redes sociais no processo de deterioração de direitos fundamentais como a intimidade, privacidade, imagem e etc., assim como a crescente propagação do assédio de consumo, o que infirma a necessidade de uma melhor tutela da vulnerabilidade comportamental do consumidor.

Nesse particular, se buscará responder é se há um paradoxo entre a espetacularização da imagem e a preservação da intimidade do indivíduo, atributos esses indissociáveis de uma vida inserida numa sociedade confessional, cujo modelo felicidade passou a depender de necessidades artificiais, estrategicamente criadas por um mercado sempre disposto a manter a dependência do consumidor a novos modelos estético-comportamentais.

É preciso reconhecer que conquanto as novas tecnologias e mídias sociais facilitem a disseminação de informações e interatividade para além das fronteiras físicas, geram consequências negativa para a exposição da vida privada. Nesse contexto, o livro discutirá o direito ao esquecimento na sociedade cibernética, por meio da sua fundamentação e dos reflexos à vida privada e coletiva dos indivíduos.

Nesse sentido, o uso da rede mundial de computadores, enquanto um dos principais meios midiáticos de massa da atualidade tem promovido a atividade dos blogueiros, vloggers, youtubers, ou seja, dos influenciadores digitais, os quais seriam contemplados pela lógica do Star System, por meio do vínculo com marcas e pelo fornecimento e produção de informações positivas sobre os produtos, visando o consflumo através da centralização do público nas mídias sociais, sem levar em consideração os direitos básicos ao consumidor, sobretudo no âmbito da qualidade e ostensividade da informação publicitária, em franco prejuízo à liberdade de escolha.

Na perspectiva do assédio de consumo, se falará da vulnerabilidade agravada da mulher no âmbito da publicidade discriminatória de gênero, a partir da análise de dados empíricos que comprovam a diferenciação sexista de preços no mercado de consumo.

No terceiro capítulo, objetiva-se falar dos caminhos para um autêntico empoderamento do consumidor no ambiente virtual e, para tanto, serão desconstruídas algumas premissas equivocadas acerca dos novos modelos criados para a solução online de conflitos de consumo.

Ao tratar das plataformas online de resolução de conflitos, o livro busca responder se a mediação online e demais medidas extraprocessuais colaboram para o empoderamento do consumidor, ou se tornaram condicionantes para a entrega da prestação jurisdicional, através de iniciativas utilitaristas do Executivo e do Judiciário nesse sentido, numa espécie de justiça de “segunda categoria” para os consumidores, justificativa para o enfraquecimento do poder de polícia e regulatório do Estado, ou mesmo numa tentativa de exclusão da jurisdição.

O empoderamento do consumidor digital também será analisado sob a ótica do compartilhamento de experiências online no âmbito do comércio eletrônico e as repercussões dessa cidadania participativa na mudança do comportamento empresarial, cada vez mais influenciado pelo valor da marca nesse ambiente tão competitivo e, ao mesmo tempo, cada vez mais agressivo nas técnicas de fidelização do cliente a partir de uma pseudo imagem institucional de fornecedores responsáveis.

Encerrando o capítulo, se renova a confiança na tutela processual coletiva do consumidor, tão subutilizada no Direito brasileiro, a despeito de sua sofisticação técnica e elevada dimensão social, a partir da análise da experiência espanhola nesse sentido.

Entretanto, o trabalho desenvolvido nesse livro não pode receber a pecha de “cético”, porquanto muitos aspectos positivos do novo paradigma tecnológico no âmbito do mercado de consumo serão abordados, mas sob uma perspectiva crítica e sempre atenta ao futuro, ou seja, em relação aquilo que deve ser aperfeiçoado, sobretudo no âmbito do controle estatal, aprimoramento da legislação e melhor execução das responsabilidades do fornecedor virtual, numa ampliação necessária do sentido e alcance do conceito insculpido no artigo 3º da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).

Estamos muito felizes por apresentar esse trabalho coletivo realizado com muito esmero pelos professores e alunos da Universidade Federal do Pará-UFPA, Centro Universitário do Para-CESUPA, Universidade de Brasília-UNB, Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro – FESUDPERJ e a octocentenária Universidad de Salamanca (ES).

Estou pessoalmente orgulhoso pelo lançamento do livro coincidir com duas datas muito importantes e não menos representativas em minha vida acadêmica, os quatro anos de atividade dos Grupos de Pesquisa “Consumo e cidadania” (UFPA) e “Consumo sustentável e globalização econômica”(CESUPA), mas sobretudo os 20 (vinte) anos de magistério superior, que tantas alegrias e realizações me deu e muitas outras ainda há de me proporcionar.

Desejo, verdadeiramente, que o livro tenha o mesmo sucesso de nossa obra coletiva anterior intitulada “Provocações Contemporâneas no Direito do Consumidor”, também lançado pela Lumen Juris, agraciado com o Prêmio “Ada Pellegrini Grinover” de “Melhor obra coletiva em Direito do Consumidor no biênio 2016-2018” pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor-Brasilcon.

Desejo a todos uma ótima leitura!

Belém, 12 de março de 2020

Dennis Verbicaro

Doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará. Professor da Graduação e dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Federal do Pará-UFPA e do Centro Universitário do Pará-CESUPA. Diretor do BRASILCON. Procurador do Estado do Pará e Advogado. dennis@verbicaro.adv.br

*Disponível para venda na Fox e no site da editora: https://lumenjuris.com.br/