Em um livro memorável, o Grande Rubem Braga elencou, em uma crônica, “as boas coisas da vida” , que ele se esforçava para limitar em dez. Uma delas, em suas palavras, era tomar um bom banho em hotel confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade, acreditando que ali poderiam acontecer coisas ‘surpreendentes e lindas’… e elas efetivamente ocorrerem.
Recordei essa passagem da obra de Rubem Braga em minha primeira visita à cidade de Belém, esse local tão rico em religiosidade, tão diverso em sabores e em temperos, coberto por mangueiras por todos os percursos, oferecendo sombra e aconchego a um povo caloroso e gentil e a todos que têm a alegria de serem anfitrionados por ele. Mencionei Rubem Braga na abertura de minha palestra, ocorrida em setembro de 2016, em evento promovido pelos amigos Dennis Verbicaro e Carlos Acioli, em parceria com o BRASILCON, esse Instituto da maior relevância e que tenho a honra de presidir na gestão 2016/2018. Rubem Braga traduziu com exatidão o meu sentimento naquele momento, de estar vivendo um daqueles momentos felizes que fazem a vida valer a pena.
O evento, como se vê, rendeu frutos, bons frutos, e temos um deles em mãos neste momento. A ideia desse livro decorreu daquele encontro e espraia-se, agora, por todo o território nacional, e por que não, para fora do país, trazendo uma coletânea de textos primorosos pela reflexão sobre os desafios contemporâneos do Direito do Consumidor nacional.
Não havia como dar errado. Como o próprio organizador nos adverte, o diferencial do livro consiste no fato de que ele se sustenta em dois pilares seguros: o diálogo e a provocação. A obra resulta de um diálogo acadêmico entre Escolas de pensamento diferentes e ambas consideradas de excelência no contexto nacional, unindo o Sul (especialmente a Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e o Norte (a Universidade Federal do Pará e o Centro Universitário do Pará-CESUPA) ao que há de tradicional além das fronteiras nacionais, especificamente a octocentenária Universidade espanhola de Salamanca. Em convergência, essas Escolas visam, por meio de seus trabalhos e pesquisas, registrados neste livro, provocar a reflexão acerca do porvir no nível de proteção dos consumidores no cenário nacional. Nas palavras do próprio Organizador, trata-se de provocar o próprio consumidor para assumir os rumos dos seus próprios interesses; de provocar o fornecedor para a atuação em seu próprio benefício, por meio da assunção de responsabilidades que lhes daria vantagens competitivas; de provocar o Estado; de provocar, especificamente, o Judiciário.
Tanto o diálogo quanto a provocação propostos foram rigorosamente cumpridos pelos colaboradores da obra. O que se vê, portanto, é um livro notável pela confluência de pesquisas e vanguardista pelo olhar para o futuro que empreende.
O livro não poderia iniciar-se de forma mais valorosa. Com uma contribuição precisa, o Professor Luiz Alberto Rocha vale-se de material doutrinário estrangeiro e de reflexões não-usuais entre os textos de Direito do Consumidor brasileiros para proceder a uma reflexão breve mas suficientemente completa a respeito dos primórdios da preocupação consumerista no mundo, atingindo a realidade brasileira e o que temos como desafios. Em um legítimo exercício de Direito Econômico, o Prof. Luiz Alberto analisa as bases do desenvolvimento do capitalismo que ensejou o surgimento das preocupações com a proteção do consumidor. Tomando por ponto de partida a experiência estadunidense e francesa, o autor traz rica pesquisa histórica e doutrinária sobre a evolução da temática nessas duas jurisdições, para culminar com a análise crítica do próprio surgimento dessas preocupações em solo nacional. Ao final, ele evoca a imperiosidade de se “trabalhar a capacidade reflexiva do consumidor, desenvolvendo a participação e afastando-o da passividade face ao funcionamento dos mercados que abusam de sua posição vulnerável.”
Não menos precisa é a proposta apresentada no texto seguinte, de autoria do Prof. Dennis Verbicaro. Desencantado com a incapacidade do Estado de entregar o resultado por este prometido no campo da proteção do consumidor, sentimento esse que parece atingir muitos daqueles que se debruçam sobre Direito do Consumidor no país, o Prof. Dennis, de forma corajosa e especialmente bem fundamentada, defende a adoção de “um modelo de liberdade participativa, que coloque o consumidor não diante de uma mera faculdade de agir, mas de uma verdadeira obrigação cívica e solidária em relação à prevenção e repressão de conflitos de consumo no Brasil”. Seu anseio é de que se assuma, a Política Nacional das Relações de Consumo, não como um dever exclusivo do Estado, que já se revelou incapaz de desempenhá-la a contento, mas “como um compromisso tripartido entre sociedade civil, fornecedores, sob a mediação qualificada do Estado”. O autor alcança, na experiência espanhola, exemplos que podem se constituir em propostas de aprimoramento da realidade brasileira por meio de associações representativas, vislumbrando a necessidade de se resgatar a autoestima política do sujeito de direitos. A riqueza dos textos consultados e que fundamentam o trabalho, e que também fogem da bibliografia tradicional utilizada no Brasil, dão o tom do ineditismo e relevância do capítulo.
Em seguida, os sempre competentes Bruno Miragem e Laís Bergstein debruçam-se sobre o papel da informação nos contratos de consumo, especialmente diante de desafios contemporâneos. Com o apoio dos melhores doutrinadores, nacionais e estrangeiros, a dupla promove um mergulho na Constituição de 1988 e suas consequências sobre o direito privado nacional, rumo ao que denominam “direito privado solidário”, em que se destaca “a valorização dos direitos humanos e dos novos papeis sociais e econômicos das pessoas”.
Por sua vez, a Prof. Pastora do Socorro Teixeira Leal centra suas preocupações sobre a sensível temática do dano, tão maltratada pelos Tribunais pátrios, especialmente quando se deparam com danos de consumo. Em um texto robusto em pesquisa e argumentação, a Professora, também membro do Judiciário federal, produz pertinente crítica ao entendimento, como mero aborrecimento, de situações perfeitamente identificáveis como dano indenizável em juízo. Trata-se, sobretudo, de uma abordagem inédita, renovada e muito adequada de um problema que há muito atormenta os consumeristas nacionais.
Velocidade das contratações, meios eletrônicos e tutela do consumidor são o objeto do texto da Professora Aline Chamié Kozlovski. Perpassando temas como o excesso de oferta, a ausência de tratamento jurídico adequado e os já conhecidos conceitos de publicidade enganosa/abusiva e (hiper)vulnerabilidade, a Professora atenta-se para os meios de obtenção da efetiva proteção dos consumidores em um cenário ainda em evolução e em processo de compreensão por parte de todos os envolvidos. Com forte pesquisa jurisprudencial, a autora foge do lugar comum e inova com êxito na abordagem do tema reconhecidamente contemporâneo.
A Professora Loiane Prado Verbicaro, fiel à sua sólida formação humanística, produz uma reflexão jusfilosófica da maior relevância a respeito da sociedade massificada, seus reflexos sobre o indivíduo e a individualidade e as influências que este sofre da indústria cultural. Valendo-se de insignes pensadores, Loiane adverte para o movimento ocorrido no passado histórico recente, que, ao lado “do desenvolvimento da técnica, da racionalidade e do progresso”, entre outros fenômenos, “pôs (…) em marcha a indústria cultural, capaz de impor valores e modelos de comportamentos uniformes insuscetíveis de emancipar ou estimular a criatividade e a liberdade, mas tão-só de realizar perfidamente o homem como ser genérico, passivo e submisso à lógica da engrenagem de dominação da natureza em prol do progresso tecnológico.” Sua abordagem, eminentemente filosófica, alinha-se ao que de melhor se tem produzido em termos de Behaviorismo no mundo atualmente, em Ciências afins, como a Economia e a Psicologia.
Em trabalho a seis mãos, os autores Dennis Verbicaro, Lays Rodrigues e Camille Ataíde voltam-se para o “assédio de consumo”, circunstância em que se evidencia a vulnerabilidade comportamental do consumidor. O texto concilia um tom sociológico adequado ao tema, referências de técnicas de marketing e publicidade, a exemplos concretos contemporâneos, o que permite a perfeita compreensão da teoria pela experiência. Coerente ao texto solo, de autoria do Prof. Dennis Verbicaro, que constitui o segundo capítulo desta mesma obra, mais uma vez a conclusão caminha no sentido da necessidade de se “provocar o consumidor a sair desse estado de indolência e apatia”, convocando-lhe a assumir “uma postura mais combativa no acesso à informação qualificada, em especial no momento pré-contratual”.
No Capítulo seguinte, Claudia Lima Marques e Carlos André Carvalho Acioli tratam do problema da falha das agências reguladoras nacionais em cumprir sua missão constitucional, mormente no que se refere ao reflexo de sua atuação sobre a política consumerista nacional. De fato, o tema é pertinente e atual, haja vista a ausência de um marco legal claro para as agências reguladoras no Brasil, o que tem dado margem à atuação por vezes errática, não raro desalinhada entre as entidades federais do gênero. Revisitando sua origem histórico-constitucional e legal, os autores escolhem a ANAC – Agência Nacional da Aviação Civil – para uma análise pontual sobre a atuação regulatória sobre serviços essenciais.
Felipe Guimarães de Oliveira e Suzy Elizabeth Cavalcante Koury interessam-se pelo tema do superendividamento, visto pela ótica do capitalismo e da globalização econômica. Sabe-se ter sido, a Professora Suzy, orientanda do saudoso Mestre Washington Peluso Albino de Souza, considerado por todos o “pai” do Direito Econômico no país. As lições precisas do mestre têm suas marcas na abordagem reflexiva e econômica escolhida e muito bem executada pelos autores, sustentada por dados empíricos e atenta à finitude própria dos recursos.
O tema do superendividamento também foi enfrentado pelos autores Francisco Meira e Sandra Regina Martini, que não negam, ao invés, evidenciam, o direito ao crédito como direito humano. O trabalho é calcado sobretudo sobre a reflexão acerca dos efeitos do crédito nas sociedades atuais, em que oscila entre fator de inclusão e de exclusão das pessoas de seu grupo social.
O desafio da solução dos conflitos de consumo e a crise do modelo judicial não poderia estar de fora de uma obra que se preocupa com os problemas contemporâneos em Direito do Consumidor no Brasil. Esse esforço foi bem empreendido pelos Professores Gisele Santos Fernandes Góes e Arthur Laércio Homci, que vislumbram, no incidente de demandas repetitivas, um caminho para enfrentamento do problema. O trabalho apresenta a sempre desejável menção a dados oficiais, que bem ilustram e corroboram afirmações acadêmicas. Defende-se o instituto de ordem processual, conhecido por IRDR, sem se descurar de suas limitações, haja vista que, em suas palavras, “a maneira mais eficiente para solucionar tal crise não é jurídica, mas sim gerencial, a determinar um novo modelo de relação entre prestador/fornecedor e consumidor, afeita à solução imediata e extrajudicial de eventuais conflitos”.
O Professor Adelvan Oliverio também se interessa pelo direito processual e sua interface com as questões consumeristas. Mesmo reconhecendo ser o IRDR um “instrumento que objetiva a solução eficiente para demandas que apresentem conteúdo padronizado, impedindo a existência de um sem-número de provocações endereçadas ao Poder Judiciário”, o autor adverte para a difícil “compatibilização da tutela processual coletiva – especialmente daquela inerente aos direitos individuais homogêneos – com os mecanismos de resolução de demandas repetitivas”, questão, segundo ele, ainda posta à solução por parte da doutrina e dos juízes nacionais. Trata-se de reflexão ainda sub-explorada nos debates que se tem travado no país sobre aspectos processuais da defesa do consumidor, mas que, muito além de um exercício teórico e acadêmico pertinente, revela-se como uma circunstância de resultado prático grave e inegável.
Em seu trabalho, o Professor Ricardo Araújo Dib Taxi, partindo de um estudo de caso, especificamente a aplicação da teoria do adimplemento substancial em um caso concreto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), pretende produzir um alerta de que, em situações por ele identificadas, poder-se-ia vislumbrar as influências de um paradigma liberal e positivista no julgamento de demandas neste Tribunal. Preocupa-se, o autor, com as chamadas “teorias de fundo” que subjazem as decisões da Corte.
Fechando com o brilho que a obra merece, o ilustre Professor de Salamanca Lorenzo M. Bujosa Vadell escreve sobre “arbitragem de consumo”, especialmente produzindo relato imprescindível para a compreensão da evolução do tratamento da questão naquele país. Em defesa das virtudes dessa solução, com base na experiência espanhola, Vadell informa de sua capacidade de solucionar litígios de forma rápida e econômica, sem descurar dos níveis de direitos e garantias fundamentais dos consumidores. Em um país como o Brasil, com altíssimos índices de demandas judiciais de consumo e em que a possibilidade de uso eficiente e adequado da arbitragem ainda encontra debates vigorosos, o texto apresenta informações relevantes para o amadurecimento de sua compreensão, a partir de uma experiência estrangeira.
Seja pela amplitude dos desafios cobertos, seja pela qualidade dos textos produzidos, que, não raro, fugiram da bibliografia tradicional e encontraram subsídios e fundamentos em textos e Ciências diversas, tem-se em mãos uma obra única, reflexiva e propositiva e altamente recomendável.
Inicio e encerro meu breve Prefácio com a referida crônica de Rubem Braga “As boas coisas da vida”. Em sua lista de dez itens que tornam a vida mais fácil de ser vivida, o Cronista também se refere ao ato de ler pela primeira vez um bom texto ou ler um texto que causa inveja em nós mesmos e vontade de reler. Os amigos do Pará me proporcionaram, de uma só vez, duas grandes alegrias na vida. Recomenda-se, agora, além da leitura da obra excepcional que se tem em mãos, pela qual parabenizo seu Organizador e os Colaboradores, a leitura da crônica de Braga, sobretudo por aqueles curiosos para saber as demais oito maravilhas de estar vivo.
Sucesso ao livro!
Brasília, 11 de maio de 2018.
Amanda Flávio de Oliveira
Professora decana de Direito Econômico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Presidente Nacional Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON)
Advogada militante em Minas Gerais e em Brasília
*Disponível para venda na Fox e no site da editora: https://lumenjuris.com.br/